segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O xangô de Baker Street


"Seus pés mal tocam o chão molhado. A capa dá-lhe a aparência de um enorme abutre planando na chuva... o pássaro indefeso e a ave de rapina. Ele quer encontrá-la de frente. Sabe que a mulher não tem saída, o próximo cruzamento é somente na rua dos Inválidos. Ele gira à direita e voa em direção ao outro entroncamento. Ofegante, colado ao muro da última casa da esquina, ele avista sua vítima. Esconde a adaga sob a capa, como a muleta de um toureiro, e aguarda. Carolina de Lourdes só tem tempo de estender as mãos, tentando inutilmente proteger-se. A lâmina atravessa-lhe as palmas e penetra no pulmão. Ele arranca a faca e golpeia de novo a moça, uma, duas, cinco, quinze vezes. Carolina já está morta no solo quando ele se ajoelha, abre-lhe o ventre até o esterno, arranca o fígado ainda quente da menina e o esfrega no próprio rosto, sofregamente. Lambe e aspira o orgão viscoso. Não experimenta repulça, pelo contrário, o cheiro adocicado de sangue faz com que ele tenha um violento espasmo de prazer. Sente-se exaurido. Ainda não é desta vez que come a carne do pecado. Prefere esperar, pois sabe que a melhor iguaria só é servida ao final do banquete. Quase delicadamente, ele recoloca a víscera gotejante no abjeto rasgão,depois, num gesto tornado mecânico pela rotina, decepa as orelhas da infeliz, guarda-as no bolço e puxa o violino pendurado ao cinturão. Tira fora mais uma corda, o lá, a terceira do instrumento, e executa a tétrica cerimônia de colocá-la sobre o púbis da jovem. Afasta-se, então, dedilhando um pizzicato na última corda que lhe resta. Na rua, a chuva lava o sangue da pobre mulher caída na calçada, braços abertos em cruz, com as mãos perfuradas, como as chagas de Cristo."

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Retrato de Mãe



Uma simples mulher existe que,
pela imensidão do seu amor,
tem um pouco de Deus,
e pela constância de sua dedicação
tem um pouco de anjo;
que, sendo moça, pensa como uma anciã
e, sendo velha,
age com todas as forças da juventude;
quando ignorante,
melhor que qualquer sábio
desvenda os segredos da natureza,
e, quando sábia,
assume a simplicidade das crianças.

Pobre, sabe enriquecer-se com a felicidade dos
que ama e, rica, empobrecer-se para que seu
coração não sangre, ferido pelos ingratos.

Forte, entretanto, estremece ao choro duma
criancinha, e fraca, não se altera
com a bravura dos leões.

Viva, não sabemos lhe dar o valor
porque à sua sombra todas as dores se apagam.

Morta, tudo o que somos e tudo que temos
daríamos para vê-la de novo,
e receber um aperto de seus braços
e uma palavra de seus lábios.

Não exijam de mim que diga o nome dessa mulher,
se não quiserem que ensope de lágrimas este álbum:
porque eu a vi passar no meu caminho.

Quando crecerem seus filhos,
leiam para eles esta página.
Eles lhe cobrirão de beijos a fronte,
e dirão que um pobre viandante,
em troca de suntuosa hospedagem recebida,
aqui deixou para todos o retrato de sua própria mãe.